De João A M Santos, no Facebook em DEZ2017:
"Porque é Natal...
A sociedade ocidental, e a portuguesa também, naquilo que nos diz respeito, vive neste momento uma crise de paradigmas de mobilidade devida ao crescente aumento e utilização (sim, são coisas diferentes) do parque automóvel, e dos veículos motorizados de uma forma geral, nos seus centros urbanos. Sem querer fazer a apologia (ou detracção) de qualquer meio de transporte em particular, creio que podemos afirmar que, no caso da sociedade portuguesa, o leque de alternativas de transporte é menor que em outros países europeus. Mesmo que essa limitação esteja no interior de cada um. Basta irmos a Barcelona para verificarmos a quantidade de "scooters" existente relativamente ao número de automóveis, ou ir a qualquer cidade holandesa ou alemã para verificarmos o número de bicicletas que por lá circulam diariamente. Nestes últimos casos, estamos a falar de números que, para os nossos padrões, são astronómicos. Em Amesterdão, por exemplo, onde mais de 60% da população utiliza diariamente a bicicleta, podemos ter um fluxo destas, em certas artérias, que ombreia com o fluxo de veículos na CRIL em Lisboa ou na VCI no Porto. Na Alemanha, mas não só, vemos pessoas já de certa idade (idade para ter juízo, diremos nós), a ir diariamente para o seu local de trabalho de bicicleta: dar aulas numa universidade ou trabalhar num hospital, por exemplo. Em Portugal, salvo algumas excepções, estas situações são inexistentes. Nos grandes centros urbanos, a percentagem de pessoas que usa a bicicleta como meio de transporte primário, ou que se desloca diariamente quatro quilómetros (cerca de quarenta minutos) a pé para ir trabalhar, é, infelizmente, muito reduzido. Mas nem sempre foi assim. A motorização da população durante os anos 60 e 70 do século passado foi galopante em Portugal e, contrariamente ao que aconteceu noutros países europeus, os restantes meios de transporte não conseguiram acompanhar esta tendência e oferecer alternativas. Nos anos 80 e 90, seguiu-se a mesma orientação: acabaram-se com linhas de comboio e alcatroou-se Portugal do Norte ao Sul com auto-estradas. Algumas, manifestamente de pouca utilidade. Ao mesmo tempo, os acessos pedonais, as bicicletas e os transportes públicos não seguiram a mesma tendência de crescimento, sofrendo, em alguns casos e em alguns locais, uma implosão quase total. Com este processo, a sua memória colectiva apagou-se. A geração nascida por volta da segunda guerra mundial foi praticamente a primeira a ser influenciada pelo novo paradigma, e a ser massivamente "encartada" e orientada para a condução de veículos automóveis. Esqueceram rapidamente o hábito da geração anterior de se fazer deslocar a pé, de bicicleta e de comboio, para muito curtas, curtas e longas distâncias respectivamente, e a memória destes meios de locomoção ficou indelevelmente apegada a uma época de privação de meios económicos e de conjunturas sociais adversas. O automóvel surgiu como um sinal de progresso e riqueza e rapidamente se tornou o padrão para a mobilidade dentro e fora das cidades. E assim continuou até chegarmos à situação actual, com evidências de ser cada vez mais incomportável a vários níveis. Recentemente, talvez devido à crise económica e à crescente consciência ecológica, uma muito estreita faixa da população tem vindo a colocar a hipótese de voltar a utilizar meios de transporte mais suaves, mais eficientes do ponto de vista energético, menos poluentes, que promovam uma maior actividade física e que, consequentemente, beneficiem a saúde. A bicicleta é um deles. É tempo talvez das autoridades competentes olharem a sério para este facto e aproveitarem esta disposição que pode não durar muito se não for acarinhada. Muitos esperam apenas que alguém lhes faça ver que existem outras alternativas ou então sentirem que podem ir para o trabalho a quatro ou cinco quilómetros de casa em quinze minutos sem risco de terem um acidente grave. Um sério e ponderado investimento nestes meios de transporte talvez se justifique a médio e a longo prazo, com reflexos na economia, no Sistema Nacional de Saúde e na felicidade colectiva da população. Afinal, apenas devido a acidentes de viação, e segundo dados da ANSR referentes a 2015, morreram nesse ano em Portugal 363 condutores, 84 passageiros e 146 peões. E daí também resultaram 1975 feridos graves. Destes, uma grande percentagem foi de crianças. As "tragédias" são-no pelo enquadramento que se lhes dá, mas estes números equivalem bem a uma mão cheia de atentados terroristas ou a duas ou três quedas de aviões cheios de portugueses apenas durante um ano. Talvez não fosse má ideia pensar nisto como uma oportunidade de fazer alguma coisa e, principalmente, alterar políticas, mentalidades e comportamentos."