terça-feira, 29 de agosto de 2023

Loteamento da Fundição de Oeiras

Fotografia Google Maps / Street View

 

Loteamento da Fundição de Oeiras - Avaliação de Impacto Ambiental

Participação

AGO2023

  

Estamos a assistir aos primeiros sinais, bem claros para quem os quer ver, da catástrofe climática, que é infelizmente imparável. De todos os lados, governos, câmaras, ONU, instituições científicas, ONGs, ouvimos apelos da necessidade urgentíssima de mudar o modo de vida e o nosso consumo. O setor dos transportes é responsável por algo como 27% das emissões de carbono para a atmosfera. As nossas cidades são o domínio absoluto do automóvel, que consome um espaço desmesurado no estacionamento e circulação, é uma fonte avassaladora de poluição, mata peões (1) e impede a vivência segura e livre da rua pelas crianças.


Também na Câmara de Oeiras boas intenções não faltam:

 

https://www.oeiras.pt/portugal-2020-e-pamus

 

"Promoção de estratégias de baixo teor de carbono para todos os tipos de territórios, nomeadamente para as zonas urbanas, incluindo a promoção da mobilidade urbana multimodal sustentável e medidas de adaptação relevantes para a atenuação".

 

https://www.oeiras.pt/-/consulta-publica-pmuso-pao-2023

 


"O objetivo da elaboração do Plano de Mobilidade Urbana Sustentável (PMUS) de Oeiras e do Plano de Acessibilidade (PA) de Oeiras é dotar o Município de Oeiras de documentos municipais que enquadrem a estratégia de planeamento e de atuação coerente com a promoção de uma mobilidade mais sustentável, com menores custos e impactes ambientais."

...

 

•    Favorecer uma evolução sustentável da repartição modal de deslocações;

•    Preparar a população para uma mudança de hábitos de mobilidade."

 

No entanto este plano de pormenor ignora a realidade e continua a fazer a habitual promoção da utilização do automóvel:

  • pela quantidade de lugares de estacionamento por fogo e serviços, continuado a premiar a posse e uso do automóvel (quase 2800 lugares de estacionamento, muito acima do que o próprio PDM exigiria!)
  • propondo amplas estradas e estacionamento no seu interior, espaço que poderia ter usos muito mais nobres e obrigando nalguns casos à coexistência de ciclistas e peões, uma prática em total contradição com o que se faz onde se promove realmente a mobilidade suave
  • 2 silos automóveis, um no interior e um proposto para o exterior
  • diversas alterações nas vias exteriores, todas no sentido de "escoar" mais trânsito, incluindo a reposição de 2 vias na Estrada da Medrosa e refazer uma ciclovia cujo investimento foi feito há escassos meses
  • uma nova estrada nos limites do concelho de Cascais/Oeiras
  • aquisição de terreno para alargar estrada e financiamento de silo fora da área do plano


Ao contrário de quando os municípios fazem alastrar a mancha da urbanização para longe dos serviços e do transporte pesado, no caso deste loteamento essa justificação para tanta importância e recursos dados ao carro não existe: estação de comboios, terminal de autocarros, escolas, centro de saúde, serviços, comércio local, e até praia e jardins - todos estes pontos podem ser atingidos a pé sem nenhuma dificuldade. O comboio coloca os passageiros no Cais do Sodré em cerca de 15 minutos. Alcântara, e Santos têm ou terão metro a curto prazo.
Não existe por isso nenhuma justificação para tanta promoção do carro neste plano.

Na memória descritiva escreve-se:

 

 

"ACESSIBILIDADE EM MODOS ATIVOS

...

A rede ciclável atual consiste no troço da Avenida da Marginal (com a cor rosa) permitindo a sua ligação com as praias de Oeiras, Santo Amaro e Paço de Arcos. Com a materialização desta rede de percursos cicláveis, a área de estudo terá boas condições de mobilidade ciclável, com ligação a estações ferroviárias da linha de Cascais e Sintra.

Por outro lado, são amplamente conhecidos os benefícios associados à utilização da bicicleta, destacando-se, entre estes, a contribuição para a melhoria da qualidade do ambiente urbano, a redução da emissão de gases de efeito de estufa pelo sector dos transportes, a redução do consumo de energia, a redução do consumo de espaço público e a melhoria da saúde da população.
Neste entendimento, o esquema de mobilidade ativa previsto para os lotes em estudo e sua envolvente reúne um conjunto de requisitos que garantem uma circulação atrativa, segura e de qualidade pelos diversos utilizadores, prevenindo eventuais conflitos e acidentes."

 

 É falso que o "troço da Avenida da Marginal (com a cor rosa)" possa ser considerado para a mobilidade ciclável, uma vez que na realidade, é lá proibido circular de bicicleta na maior parte do tempo. Figura no PDM como um troço ciclável, mas a sinalização no local viola o próprio PDM. 

Por outro lado, ao mesmo tempo que se listam os benefícios da utilização da bicicleta, nada de facto é proposto para a melhorar nas imediações do loteamento (por exemplo, a norte da linha, ou na ligação ao centro histórico, ou na ligação ao concelho de Cascais), limitando-se esta Memória Descritiva a esperar placidamente que o PDM seja cumprido - repare-se porém no gritante contraste com as propostas, os planos e os recursos previstos e a disponibilizar pelo promotor para fazer "fluir" mais trânsito automóvel fora dos limites do loteamento.

Porque é que este plano não financia a construção de ciclovias, em vez de dedicar tanto dinheiro a construir estacionamento ou estradas no exterior do plano, e não paga à IP a construção da passagem pedonal no viaduto do comboio, em vez de apenas o aconselhar?

 

Quanto à afirmação

 

"e reúne um conjunto de requisitos que garantem uma circulação atrativa, segura e de qualidade pelos diversos utilizadores, prevenindo eventuais conflitos e acidentes"

 

esta colide frontalmente com a construção de ciclovias partilhadas com passeios - exatamente o que não deve ser feito, por razões óbvias.

 

 

Oponho-me à aberrante, embora habitual e não surpreendente, preponderância do automóvel neste plano e exorto a Câmara de Oeiras a inovar, construindo um bairro que não seja carro-dependente. 

Trata-se de uma zona com as melhores acessibilidades de transportes públicos e pedonais que é possível.  Desafio a Câmara a entrar no sec. XXI, construindo um novo bairro com reduzido espaço de estacionamento e circulação automóvel, em vez do sobredimensionado destes pontos de vista, usando esse espaço para fruição pública. Seria assim um bairro escolhido pelas pessoas que preferem viver sem o carro, ou com pouca utilização do carro, fazendo uso em vez disso uso das excelentes alternativas de mobilidade pedonal e em transporte público.

É necessário que a ação das câmaras, e a de Oeiras em particular, cumpra as suas declarações políticas da urgência de mudar a mobilidade, e não que essa ação faça sempre precisamente o contrário -  como se constata neste plano de loteamento ao estilo do sec. XX

 

Por outro lado, este loteamento propõe uma densidade de ocupação que parece excessiva. Porém, entre uma densidade elevada junto de serviços e transporte pesado, e a contínua expansão da urbanização que as câmaras promovem, incluindo a de Oeiras, talvez o mal menor seja o primeiro - desde que não se cometa o erro de, apesar da manifesta falta de necessidade, se continue a privilegiar e promover a posse e utilização do automóvel privado, como acontece neste loteamento.



(1) Portugal é o 2º pior país da EU no que toca à percentagem de peões mortos em áreas urbanas e o 8º pior em termos absolutos: https://road-safety.transport.ec.europa.eu/system/files/2023-02/ff_pedestrians_20230213.pdf


sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Organização portuguesa

 Texto de João Miguel Tavares, lido no Público em 8AGO23:


"O enorme sucesso da Jornada Mundial da Juventude demonstra, mais uma vez, o espantoso talento português para a organização de grandes eventos, invariavelmente recorrendo a uma táctica que qualquer alemão ou japonês consideraria suicida, mas que em Portugal sobrevive fresca e viçosa, como o eucalipto: primeiro, desperdiçam-se anos a fio em discussões inúteis, decisões adiadas e mau planeamento; e depois, nos meses finais de preparação, já com vista privilegiada para a catástrofe, eis que ocorre uma extraordinária explosão de pragmatismo e de absoluta dedicação à causa.


Ninguém quer ficar mal visto. O Manuel pede à Ana para falar com o Joaquim que liga ao António para resolver com a Maria. Milhares de pessoas passam semanas sem dormir. Dezenas de milhares voluntariam-se para ajudar. Não há greve nacional que não seja desconvocada. E por fim, como que por milagre – e por ajuste directo –, nascem pontes, palcos, passadiços, percursos, e até noites de 22 graus para ninguém ter frio junto ao Tejo.

É nesse preciso momento que a imprudência dá lugar ao espanto, e que, de acordo com os padrões ciclotímicos do homo lusitanus cientificamente estabelecidos, acreditamos durante cerca de 48 horas que somos os melhores do mundo. Depois, claro, a sensação passa. Mas fica na boca a memória de um certo sabor a heroísmo que ajuda a consolar os nossos dias, e que dá para alimentar vários discursos fogosos do Presidente da República."